domingo, 27 de abril de 2014

«Auto-retrato com a musa» de Vasco Graça Moura

                                                           

Vasco Graça Moura nasceu na Foz do Douro, Porto, a 3 de Janeiro de 1942; e faleceu em Lisboa, a 27 de Abril de 2014.
Hoje foi o dia do adeus ao poeta, a um dos mais importantes vultos da literatura e da cultura portuguesas, e ao defensor incontestável da integridade da língua portuguesa.
Aqui ficaremos nós, os amantes como ele da nossa língua, para continuarmos a sua luta.

Formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1966.  Depois de ter exercido
advocacia, desempenhou vários cargos públicos.
Foi colaborador de jornais, revistas e de canais de televisão. Tem muitas das suas obras traduzidas para italiano, francês, alemão, sueco e espanhol. É autor de numerosos ensaios, alguns deles premiados, e de excelentes  traduções literárias.

Foi distinguido com vários prémios, entre os quais o Prémio Pessoa (1995), o Prémio de Poesia do PEN Clube (1997) e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa em Lisboa de Escritores (1999). Em 1997 foi-lhe atribuída a Medalha de Ouro da Cidade de Florença, pelas suas traduções de Dante. Em 2004, ganha a Coroa de Ouro do Festival de Poesia de Struga (Macedônia), sendo o primeiro poeta português a ser distinguido com este galardão. Foi membro efetivo da Académie Européenne de Poésie (Luxemburgo).


                                                      Auto-retrato com a musa
          
          
            1.
           
           
            vejo-me ao espelho: a cara
            severa dos sessenta,
            alguns cabelos brancos,
            os óculos por vezes
            já mais embaciados.
           
            sobrancelhas espessas,
            nariz nem muito ou pouco,
            sinal na face esquerda,
            golpe breve no queixo
            (andanças da gilette).
           
            ia a passar fumando
            mais uma cigarrilha
            medindo em tempo e cinza
            coisas atrás de mim.
            que coisas? tantas coisas,
           
            palavras e objectos,
            sentimentos, paisagens.
            também pessoas, claro,
            e desfocagens, tudo
            o que assim se mistura
           
            e se entrevê no espelho,
            tingindo as suas águas
            de um dúbio maneirismo
            a que hoje cedo. e fico
            feito de tinta e feio.
           
           
            2
           
           
            quem amo o que é que pode
            fazer deste retrato?
            nem sabê-lo de cor,
            nem tê-lo encaixilhado,
            nem guardá-lo num livro,
           
            nem rasgá-lo ou queimá-lo,
            mas pode pôr-se ao lado
            e ter prazer ou pena
            por nos achar parecidos
            ou não achar. quem amo
           
            não fica desenhado,
            fica dentro de mim
            e é quando mais me apago
            e deixo de me ver
            e apenas me confundo,
            amador transformado
            na própria coisa amada
            por muito imaginar.
            assim nem john ashberry,
            nem o parmegianino,
           
            nem espelho convexo,
            nem mesmo auto-retrato.
            só uma sombra que é
            na sombra de quem amo
            provavelmente a minha.
           
           
            3
           
           
            quem amo tem cabelos
            castanhos e castanhos
            os olhos, o nariz
            direito, a boca doce.
            em mais ninguém conheço
           
            tal porte do pescoço
            nem tão esguias mãos
            com aro de safira,
            nem tanta luz tão húmida
            que sai do seu olhar,
           
            nem riso tão contente,
            contido e comovente,
            nem tão discretos gestos,
            nem corpo tão macio
            quem amo tem feições
           
            de uma beleza grave
            e música na alma
            flutua nas volutas
            de um madrigal antigo
            em ondas de ternura.
           
            é quando eu sinto a musa
            pousando no meu ombro
            sua cabeça, assim
            me enredo horas a fio
            e fico a magicar.
          
                                              
                              
           

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Uma nova flor em abril de 1974



40 anos dos cravos de abril



Hoje, comemoram-se os 40 anos do 25 de abril.
Este ano tudo se torna muito mais dramático e constrangedor, pois os portugueses estão mergulhados numa profunda crise financeira, ditada pelas forças mundiais do capitalismo e pela actual União Europeia, que as defendem e as promovem, baixando os salários e aumentando os impostos das classes trabalhadoras em geral e da classe média em particular.
Por isso, as preocupações dos portugueses são mais que muitas quanto ao seu futuro e dos seus filhos, e pouca a energia para festejar ou comemorar alegremente este dia da libertação do fascismo, como em muitos outros anos anteriores.
O que é bizarro, ou talvez não, é que também eu comemoro 40 anos de conhecimento mútuo e de convívio diário com o colega de curso que se tornaria o marido e companheiro de todos os dias. Foi uns dias depois deste memorável dia de abril de 1974 que nos conhecemos a sério, pois só nos conhecíamos de vista até aí.
As aulas na Faculdade de Letras foram então interrompidas, como em todos os estabelecimentos de ensino do país, seguindo-se meses de euforia, confusão, de farniente e de tardes passadas em cafés, esplanadas ou no Itau de Entrecampos, como foi o nosso caso. As minhas amigas e eu numa mesa, ele noutra ao pé.
Começámos a ver-nos e a encontrarmo-nos por ali, no mesmo sítio, até que metemos conversa e tudo se desenrolou como estava escrito là haut. Era o nosso destino! Ou alguns pós mágicos que nos caíram em cima, lançados por algum Cupido desenvergonhado!

Nessa altura éramos jovens, pois éramos, apenas 19 anos e uma enorme vontade de liberdade, de falar uns com os outros, de nos ajudarmos, de nos apaixonarmos. Foi amor à 1º vista, nessa altura, tiro e queda. Tudo o propiciava. Foi bonito. Casámos passados 6 meses, começámos a viver juntos até hoje em Novembro de 1974.

Por isso, a comemoração desta data é para mim tão especial. Foi com ela e através dela que se iniciou a minha vida de adulta.

Tantas recordações, tanta coisa nova que experimentei, tanta coisa que aconteceu.

 Éramos jovens, a malta era jovem, pois era!!

E Isso nunca mais vai acontecer, tenho a certeza.
Mesmo tendo nascido uma flor nova em Portugal, o cravo vermelho, como diz Geoges Moustaki no seu fado tropical.
 
 
 
 

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Centenário do nascimento de Marguerite Duras




Comemora-se hoje o centenário do nascimento desta escritora com diversos eventos em Lisboa e Porto. 
Marguerite Duras nasceu a 4 de Abril de 1914, em Binh Thanh, actual cidade de Ho Chi Minh, e na época colónia francesa de Saigão.
Autora de romances como "O Amante" e "O Amor", Marguerite Duras foi criadora de um extenso universo ficcional que atravessa o romance, o teatro, a escrita para o cinema e a realização cinematográfica.
Autora do argumento do filme "Hiroshima, meu amor", realizado por Alain Resnais, foi autora de curtas-metragens documentais e peças de teatro.


A obra de Duras é integrada no chamado "novo romance" e na corrente filosófica do "existencialismo", que teve como figura de proa o filósofo francês Jean-Paul Sartre.
Várias obras suas foram adaptadas ao cinema e, como realizadora, dirigiu, entre outros, o filme "India Song" (1975).


segunda-feira, 31 de março de 2014

O mistério do amolador





O mistério do amolador


Dia de chuva é dia de amolador passar.
Ou antes de chover, a preanunciar o evento molhado, ou depois, é certo que o amolador vai soltar pelas ruas a sua música.
A sua melodia soa-me sempre bem, além de ser um convite para ir à janela,  arredar mais ou menos timidamente a cortina e espreitar quem lá vem.
A curiosidade é sempre mais forte que a certeza. 
Nós temos a certeza de quem vem lá, ou quase, é o nosso conhecido amolador, artista que conserta as coisas todas, desde as rachas dos pratos, pondo-lhes uns desengraçados e fortes gatos, que remedeiam para mais uns tempos, até às varetas dos chapéus de chuva. E afiam também as facas e as tesouras, utensílios tão elementares e úteis que ninguém os pode dispensar.
Ninguém é capaz de explicar que mistério liga este homem simples e andarilho à chuva. Ou a chuva ao amolador. O certo é que eles estão intimamente relacinados, não existindo um sem o outro, na maior parte das vezes.
Vamos lá ver se não é verdade: da próxima vez que chover, vamos todos esperar pela aparição do misterioso amolador. 
Com o nosso chapéu de chuva avariado.
Ou a nossa faca de estimação por afiar. 
Ou a tesoura da costura, quem sabe...


                                                                      Isabel del toro Gomes


sexta-feira, 28 de março de 2014

Um homem-estátua na primavera 2014



Um homem-estátua na primavera 2014

Na Primavera de 2014, no dia 28 de Março, o sol brilhava na rua Augusta, mas não aquecia o suficiente o ar ainda gélido. 
Por isso, mais espantoso foi ainda, para mim, o aparecimento deste homem-estátua, ali em plena Rua Augusta, empoleirado num estreito escaparate, num equilíbrio instável, todo de branco, figurando um lançador do disco, que variava com um músico de percussão (com tampas de panela).
Tirei-lhe fotografias e apreciei o seu árduo trabalho, num dia tão frio de março, não obstante o sol.
Não havia por ali mais nenhum homem ou mulher fazendo de estátua, ao contrário do que é costume. 
É que esta vida deve ser mesmo dura!


segunda-feira, 24 de março de 2014

«Cinco Réis de Gente» de Aquilino Ribeiro




Aquilino Ribeiro (1885-1963) foi um ficcionista, autor dramático, cronista e ensaísta português, de grande importãncia para a nossa literatura. A sua Beira natal (Sernancelhe) está bem presente na sua novelística, retratando de forma bem pitoresca e realista as paisagens e personagens desta região, bem como as de outros cenários.
Ler Cinco Réis de Gente é uma experiência divertida, cheia de interesse, tanto mais que a trama deriva de episódios autobiográficos da infância do autor.
É, para além de tudo o mais, um documento vivo sobre a educação e a escola portuguesa dos fins do século XIX.


                                       Quadro «Palmatória» de Debret

A vida de escola, se não fossem as operações de multiplicar e dividir, de muitas casas e com os algarismos mais altos, 9,8,7, raro matizadas pelo simpático cifrão, sem o inominável ferro-velho dos reis e das batalhas e o escalracho gramatical, não era má de todo. É certo que a professora não ascendia ao reino de Deus pela paciência, e a menina-de-cinco-olhos com ela andava numa roda - vida. Por mim observava um certo miramento; contudo, para que se não dissesse que abria excepções, ao desfastio, perante uma nega escandalosa, uma resposta de todo inadmissível, lá sentenciava:
-Menino Amadeu, estenda a mão...
E a palmatória caía-me na mão, mole ou pelo menos nada irosa, como com os outros alunos, para inglês ver.
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...a escola tornava-se aceitável que mais não fosse pelas idas e voltas. As tardes dos dias grandes passadas pelos caminhos à lei da natureza inscreveram-se indelevelmente no curso da minha vida. O que o homem mais aprecia de grandeza, glória, amor, acima do próprio pão para a boca, é a liberdade.

                        Aquilino Ribeiro, Cinco Réis de Gente, cap. X


Escusado será dizer que a «menina dos cinco olhos» é uma outra forma de denominar esse instrumento horrível de tortura que era a palmatória, eliminada em alguns países só bem recentemente, como é o caso da Grã-Bretanha, pois só em 1987 deixou de ser usada em algumas escolas. 

quinta-feira, 20 de março de 2014

«Quando Vier a Primavera» de Alberto Caeiro






Quando Vier a Primavera 


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

                                                               Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
                                                              




Para comemorar o início da primavera 2014, que não vai ser uma primavera qualquer, certamente, aqui fica este poema de Alberto Caeiro, o heterónimo de Fernando Pessoa panteísta e bom conhecedor das sensações. Com muitas flores, como as prímulas ou primaveras.